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A propósito de Abril

 

Zeca Afonso era o baladeiro que protagonizava a resistência ao regime.

Conheci-o, vagamente, uma noite em Setúbal, corria o ano de 1971, acabado de chegar de Paris, onde gravara  o seu último albúm “Tráz outro amigo também”. Saíra de casa, em Palmela, porque a Pide perseguia-o e já não conseguia ouvir o trim-trim do telefone. Cansado de uma longa viagem, sem dormir, e para “não pegar de cabeça” viera até ali, com um amigo comum açoriano, para tomar um copo. Não conversámos muito, nem sequer do regime que ele combatia “na praça da canção”, mas achei-o uma pessoa serena, sem medo, convencido de que o combate era longo e que as armas eram desiguais.

O grupo a que pertencia, unido por uma situação de rutura eclesiástica, tinha adotado um repertório de canções “subversivas”, de Adriano Correia de Oliveira, do Pe Fanhais, de outros cantores e sobretudo de José Afonso.

Animávamos convívios e fazíamos a pedagogia da alegria e da liberdade amordaçada pela censura nos jornais, na rádio, na TV e até nos livros.

Em Lisboa, nas universidades, respirava-se a contestação ao regime que, no entanto, era impotente para impedir a distribuição de panfletos, livros e revistas nacionais e estrangeiros que circulavam, cuidadosamente, de mão em mão. Para tal contribuiram grupos de reflexão, nomeadamente: da Capela do Rato, a “Igreja do silêncio” e gente ligada à Morais Editores e Editorial Sampedro que, em traduções e em edições estrangeiras, veiculavam as novas correntes do pensamento europeu.

Foi neste contexto sócio-político que vivi, também, os primeiros meses em Angola, em finais de 71.

Afastado das contestações à ditadura marcelista, o regime colonial preocupava-se mais com o desenvolvimento económico da província, como forma de resolver a discriminação racial que o terrorismo não se cansava de agitar. O aparente clima de paz que os militares portugueses se esforçavam por manter, à custa de milhares de vítimas de ambos os lados, escondia a insegurança e instabilidade de milhares de brancos nascidos naquele território ou imigrados. A ideia de Lisboa continuava a ser ocupar território e afirmar Portugal ali, mesmo que a nação vivesse cada vez mais de costas voltadas aos interesses da Província.

No meio das contradições do regime, não era de estranhar que, também em Angola, uma elite intelectual portuguesa e os próprios militares milicianos, desejassem a mudança do regime ditatorial e colonial e se revissem nas canções de José Afonso. Os discos dele não se encontravam à venda, mas por debaixo da mesa, como em Lisboa, conseguia-se, mais não fosse uma cópia em cassete.

O regime estava minado e os próprios servidores e indefetíveis, cavaram a sua sepultura.

Os interesses das classes dominantes: grandes empresários, governantes e militares de carreira, descuraram, porém, as precárias condições em que viviam milhares e milhares de brancos da classe média-baixa que, educados na fraternidade cristã e sensíveis à defesa dos valores humanos, promoviam a convivência e um certo apaziguamento de tensões.

Os negros, por seu lado, catequisados, permanentemente, pelas emissões de rádio dos movimentos de libertação, receberam o anúncio do Golpe Militar, como o fim do colonialismo e, de imediato, reclamaram a independência e o afastamento de todos os agentes coloniais.

Os brancos, impreparados politicamente, ainda acreditaram que, através da criação de movimentos democráticos locais, poderiam promover a integração racial e reivindicar direitos que lhes tinham sido sonegados. Mas depressa esses desejos se esfumaram.

O poder estava na rua e quem tinha a força das armas e o apoio internacional venceu a contenda e gerou a cruel e triste debandada de repatriados.

Passados quase quarenta anos, interrogo-me se, no precário e dependente regime autonómico em que vivemos, não estaremos a permitir demasiadas concessões ao poder central e a consentir um colonialismo encapotado cujo objetivo é reduzir direitos consagrados na Constituição.

Os governos conservadores e liberais são assumidamente centralistas, por isso, devemos encontrar outras formas de afirmação e de auto-governo dos Açores.

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